Mãe, Eu Estou tão Cansado
Mãe, eu estou tão cansado e sinto nos ossos o chamamento da água, o chamamento sibilino que se confunde com o ranger das portas das casas onde jamais voltarei: venha veloz o sono capaz de me resgatar e que dentro dele se perfilem as sombras e os gestos, exército dos meus medos mais secretos, temores enrodilhados na roupa húmida das camas.
Mãe, a luz não se demora no meu quarto, morre nas corolas das flores que trouxeste para o riso não murchar, e eu fico doente só de olhar os muros onde a hera é espiral de espanto, raiz de uma enfermidade latente.
Não voltarei às actas do desespero, que são sombrias e magras como os corpos dos amantes que definham sobre a areia na fúria da maré, com uma gramática de murmúrios escondida na solidão branca das dunas, mãe.
José Jorge Letria, in "Actas da Desordem do Dia"